Tarawera Ultra Trail
101km - Nova Zelândia
"crónicas das minhas ultra aventuras nas montanhas"
Marrocos – Deserto do Saara
250km – 6 etapas
A edição mais difícil de todas, a 35ª, foi considerada pela organização a mais dura de todas. Temperaturas de 50º e mais, gastroenterites e a morte de um concorrente, fizeram que a corrida de 2021 fosse de uma brutalidade que eu estava longe de imaginar.
Toda a preparação foi feita para uma prova, que em situação normal seria realizada no mês de abril, mas que, por motivos da pandemia, foi adiada para Outubro, sendo a 1ª vez que tal aconteceu. E que mês de Outubro !!!
Cheguei a Marrocos acompanhado do meu amigo de longa data Ivo Morais. Já temos milhares de kms feitos em conjunto, provas emblemáticas como a Transalpine ou o Aconcágua.
Mal aterramos em Errachidia vimos que qualquer coisa estava diferente daquilo que esperava-mos. Era 1h da manhã e contávamos chegar com temperaturas frescas durante a noite, mas o que apanhamos foram quase 30 graus.
No dia seguinte ao acordar no hotel, já em pleno deserto, onde íamos passar as 2 primeiras noites, sentimos o calor que se fazia sentir, e era difícil ficar parado ao sol. Mas com piscina, sombras e bebidas fresquinhas até sabia bem.
Ao 3º dia saímos do hotel e fomos largados no deserto do Saara. Fomos para a tenda que estava atribuída aos portugueses, eramos 7. Nos dois dias a seguir ainda tínhamos direito a refeições “normais”, em tendas montadas pela organização.
O check-in foi feito no dia seguinte e nessa altura já tivemos de entregar a mala e ficar só com o que íamos levar na mochila.
No controlo de material e médico, muito rigoroso, fiquei a saber que a mochila ia pesar 12 kgs já com 3 litros de água. Além da água levava-mos comida liofilizada para os 6 dias, separada por dias, saco-cama, uma esteira que foi cortada a meio e dividida com o Ivo e que só cobria meio corpo, (as pernas ficavam em solo duro) um par de meias, calções e t-shirt suplentes, além do material obrigatório, navalha, protetor solar, kit antiveneno, bússola e frontal.
No grupo dos portugueses o Carlos já tinha feito outras edições da MDS, e tínhamos indicações que as noites eram bem frescas e, durante o dia, as temperaturas normalmente andavam entre os 37/40 graus. Logo na primeira noite que passamos já em modo de prova, tivemos de dormir de calções e por cima do saco-cama, porque estava muito calor. Durante a noite lembro-me de me tapar quando uma tempestade de areia surgiu do nada e obrigou-nos a meter dentro dos sacos com cabeça e tudo. Mas antes tínhamos de nos deitar em cima do material senão voava tudo, isto foi uma constante.
No primeiro dia que passamos no bivaque, deu logo para verificar que a coisa não ia ser fácil. Com o calor abrasador, os lábios colavam e era extremamente difícil aguentar ao sol, parecia que cozíamos.
1ª etapa
Fomos acordados com os marroquinos a desmontar o bivaque, que seria montado no local do final da etapa. Com esta rotina diária ficávamos cerca de 2h ao sol, esperando pelo início da etapa.
O início foi feito a grande velocidade, com toda a adrenalina acumulada a levar-nos, a mim e ao Ivo, a sairmos muito rápido. Depressa constatamos que tínhamos de acalmar pois a areia, as dunas e o calor não perdoavam. O esforço parecia brutal mesmo depois de recuperarmos para ritmos normais. O alta temperatura fazia parecer que estávamos a grande altitude, a respiração era sempre ofegante.
Eu e o Ivo tínhamos combinado, como normalmente fazíamos, correr juntos e só no caso de um ter um problema é que o outro tinha de seguir.
Acabamos a 1ª etapa de 35km e começamos a perceber as rotinas, tínhamos 2 garrafas de água a cada abastecimento e no final 4. Era a única coisa que a organização dava durante as etapas, estamos habituados a chegar a abastecimentos e termos comida, mas na MDS é só água, o que queres comer tens de levar, posso dizer que durante as 3 primeiras etapas só comi algumas gomas de cafeína.
Feita a 1ª etapa só restava irmos para baixo da tenda proteger do sol, comer e hidratar, sendo que a comida está racionada.
Não existem banhos, não existem casas de banho, eles colocam umas portáteis só com sanita e distribuem uns sacos por atleta, mas 95% dos atletas não as usa, é preferível afastar do acampamento.
Na 1º. etapa percebemos que o consumo da água tinha de ser bem gerido e que ficar sem água com aquelas temperaturas era um risco enorme. Lembro que todas as etapas foram feitas com temperaturas na casa dos 50 graus, um autêntico forno.
Logo na 1ª etapa tivemos colegas portugueses com problemas gástricos e com os pés estragados. Eu senti algum desconforto, mas nada demais.
2ª etapa
Mais uma noite quente e novamente acordar com a desmontagem do acampamento e preparar o pequeno-almoço para depois equipar com a roupa do dia anterior, faz parte da rotina.
Novo início de etapa debaixo já de muito calor e desta vez saímos mais controlados, toda a etapa foi bem gerida e mais uma vez fizemos a prova sempre juntos.
Nesta etapa começam os problemas, o muito calor, a temperatura da areia, as polainas (material que levamos preso às sapatilhas para não entrar areia, mas que não deixam os pés respirar), comecei a ter problemas. Nem a vaselina colocada antes de cada etapa ajudava. As passagens em zonas de dunas eram de dureza extrema, a pele parecia que assava. Aproveitamos a água que a organização nos deu a mais, pelo facto das temperaturas serem muito altas, para conseguirmos arrefecer o corpo. O problema era que a água que ia para os pés os “coziam”.
Chegados ao fim da etapa fui para o posto médico tratar dos pés. Tinha bolhas nos dedos e no calcanhar. Já eram muitos os atletas que aguardando vez para o tratamento.
A médica, que por acaso era portuguesa, injetava com uma agulha um líquido qualquer nas bolhas, que causava um ardor forte, mas era bastante eficaz.
Saí do Posto Médico com uma boa quantidade de adesivo nos pés, mas ainda faltava o pior.
Neste dia perdemos o primeiro companheiro por motivos gastrointestinais.
3ª Etapa
Tudo igual aos dias anteriores, talvez este tenha sido o dia mais quente. Foram registados 54 graus.
Tínhamos pela frente as famosas dunas de Merzouga (Erg Chebbi). São cerca de 12km num sobe e desce constante, em areia superfina que enterra e desgasta. O calor lá no meio era abrasador e aí eu e o Ivo tivemos pela primeira vez a sensação de que se ficássemos sem água durávamos pouco tempo. Posso dizer que isso mexeu connosco, estávamos por nossa conta. Para “ajudar” a estas emoções à flor da pele, temos a notícia que um atleta francês morreu mesmo a 1km da meta.
Estamos completamente isolados, não temos telefone, já com saudades da família, recebemos diariamente mensagens que a organização imprime e nos entrega nas tendas. Torna-se estranho ler as mensagens e não conseguirmos dar resposta e dizer que estamos bem! Tudo isto leva a que as emoções andem no ar e o grupo aí ajuda a manter o foco.
No final da etapa tinha os pés desfeitos. Fui ao posto médico, mais ao final da tarde e o que vi foi assustador. Muitos atletas a desistir, muitos abrigados debaixo dos camiões a procurar sombras, a soro, porque já não havia lugar nas enfermarias. Até médicos vi também a tomar soro. Fazia lembrar um cenário de guerra.
Este terceiro dia ficou marcado por mais duas desistências no grupo Português. Eu tinha os pés todos ligados, além dos dedos tinha também a planta dos pés já sem pele. Comecei a ver a coisa malparada. Ainda faltavam as 2 etapas mais difíceis, a de 85km e a maratona (42km).
Essa noite foi a pior de todas. Ouvia muitos atletas a vomitar, mas muito pior que isso foi sentir o Ivo igual, sempre a vomitar e a ir ao “wc”. Para ser sincero pensei que ele já não iniciava a etapa, e imaginava com ia fazer estas 2 etapas, duras e longas, sozinho, quando ia mentalizado para terminarmos juntos !!!
De manhã o Ivo estava muito debilitado. Além de vermos 2 companheiros a ir embora, dos 7 já só eramos 4. Falamos e o Ivo decidiu ir até ao primeiro abastecimento e lá analisava a situação…
Nessa manhã assisti a um filme de terror. Eram dezenas e dezenas de atletas, desistentes, a formar fila à espera de transporte. Eram pessoas a vomitar, quase todos de chinelos e com os pés todos estragados. Foi muito desolador assistir a estas imagens. Despedimo-nos dos nossos colegas, que também tinham ficado por ali e fomos para a partida, para a mais longa e dura etapa.
4ª etapa
Ao fim de 2/3 km o Ivo parou e disse que ia ficar por ali. Já previa que ele podia ter de sair, mas quando aconteceu, a pancada foi enorme. Falamos e quando ele já tinha um jeep da organização à sua espera, despedimo-nos e ele pediu-me para terminar por ele. Foi um momento de fortes emoções. Acho que só quem está naquele cenário e condições percebe o que sentimos.
Segui sozinho, tinha 80km para fazer debaixo de mais 50 graus, e agora sem companhia, mas ia motivado a terminar por ele, por mim e por mais pessoas que muito me dizem e que em Portugal estavam coladas ao computador, a seguir a prova na tentativa de perceber o que se passava.
No meio de toda esta confusão, não troquei algum material que o Ivo tinha, mas que era em comum, incluindo a comida líquida dele que muita falta me fez.
Para ajudar à festa o meu chip deu problemas e deixou de dar passagem nos postos de controlo. Surge a notícia que também tinha desistido, mas ninguém sabia onde eu andava. Mas eu continuava lá, no meio do Deserto do Saara, sem saber de nada.
Etapa muito, mas mesmo muito dura, a comer comida líquida, a beber água a ferver, os pés desfeitos e a pele parecia que estalava do sol. Quilómetro a quilómetro fui andando entre correr e caminhar, contava que com a chegada da noite o calor desse tréguas, mas isso não aconteceu. A noite estava quente e o corpo continuava a ferver.
Com a chegada da noite, que eu ansiava, comecei a ver na zona das dunas, muitos escorpiões. Ainda hoje não consigo perceber se eram verdadeiros ou se eram alucinações.
Finalmente vejo, ao longe, as luzes da chegada. Mas do ver ao chegar passaram quase duas horas. No deserto conseguimos ver muito longe, mas é desesperante porque nunca mais lá chegamos.
A etapa longa estava feita, foram 15h de sofrimento, tudo que passei foi muito duro, principalmente naquelas condições. Queria ter acabado e ter a família à espera, mas não havia ninguém, nem a companhia do meu amigo Ivo agora tinha.
Fui para a tenda e soube que tinha desistido, além do Ivo outro companheiro. Já só restávamos 2 dos 7.
Dia de descanso
Depois da etapa longa é dia de descanso, porque durante quase todo o dia vão chegando atletas.
Depois de uma noite mal dormida, tomei o pequeno-almoço que senti logo que me caiu mal. Aguentei-me com muito esforço, pois sabia que era fundamental estar o melhor possível para conseguir terminar a etapa maratona. Só que foi a última refeição que fiz. Passei o dia de descanso sem comer mais nada e sempre deitado na sombra da tenda. Mas foram muitas horas e como ia adormecendo e acordando, os danos que o sol e a areia tinham provocado notavam-se mais.
Por esta altura ainda não sabia que em Portugal pensavam que eu tinha desistido e não sabiam onde andava!!! Quando a organização me entregou as mensagens impressas, começo a ler que as mensagens eram de motivação, não para terminar o que me faltava fazer, mas por terem pensado que eu tinha desistido. Do género: “O deserto esta aí e voltas para ajustar contas”, “foste de uma dureza incrível”, “boa recuperação e bom regresso”, “perante essas condições já foste um valente”. Foi com estas e outras mensagens que eu percebi que pensavam que tinha desistido.
Fui então falar com a organização e perceber o que se passava. Reparei que não fazia parte da classificação de final da etapa. Depois de falar com alguns responsáveis lá conseguimos resolver a situação. Depois de tanto sofrimento não era por um erro que ia sair da prova. Perante o erro assumido pela organização deixaram-me avisar a família que estava tudo bem e que continuava em prova.
Resto do dia a fugir do sol e a tratar dos pés e com o melhor “presente”: o Rei de Marrocos ofereceu uma coca-cola fresquinha a todos os atletas (já não eram muitos) e foi a única coisa que “comi” o dia todo.
Praticamente todos os atletas tinham os pés em muito mau estado e até os habituais candidatos à vitória, os marroquinos, estavam muito maltratados. Em conversa com o vencedor e que já era a quarta ou quinta vitoria na MDS, ele disse que nunca em edições anteriores carregou 3 litros de água, mas que, naquelas condições houve sectores que teve de carregar peso que não contava.
Etapa maratona
Passei a noite a pensar como iria fazer mais 42km com semelhantes condições físicas. Os pés, calor, sem comer e quase sem beber, o facto de a água estar sempre muito quente e mesmo à noite a temperatura ser alta a água não ficava natural.
Deixei uma embalagem de um SOS que transporto nestas grandes provas para tomar a meio da etapa, porque estava completamente em jejum há mais de 24h.
Mais um dia de 50 graus, dores nos pés, era doloroso calçar as sapatilhas, mas sabia que faltavam 42km para concluir a aventura.
Cheguei ao 1º abastecimento e foi a primeira vez que, sinceramente, pensei em desistir. Estava a ser muito doloroso, mas uma conversa com o pessoal impecável da organização e alguns atletas serviu para continuar, de abastecimento em abastecimento.
Lembro-me de chegar ao 3 e último abastecimento e ver garrafas de água totalmente embaciadas, pensei de imediato que finalmente nos iam dar água gelada, mas puro engano, era só pó da areia. Grande desilusão!!
Os últimos quilómetros foram massacrantes. Nunca mais se via o pórtico da chegada, até que ao passar uma pequena montanha rochosa, lá vejo, ao fundo, a meta. Aí subiu a adrenalina e foi a bom ritmo que fiz os últimos quilómetros, com todas as emoções em alta e a receber a já habitual medalha de finisher, do diretor da prova. Dirijo-me para a câmara que existia em todos os finais de etapa e transmitia em direto para soltar umas palavras e gestos emotivos, e nessa altura todo o stress acumulado, todas as emoções, tudo porque passei, foram mais fortes e reconheço que me escorreram algumas (muitas) lagrimas. Não sei de onde vinha essa água, mas ainda tinha uma pequena reserva.
Falta referir que no final de cada etapa tínhamos uma oferta de um chá super doce que sabia pela vida.
Estava feita a MDS mais difícil de sempre, isto segundo discurso final do diretor da prova Patrick Bauer aquando da entrega dos prémios.
Foi a edição com a mais elevada taxa de desistência de sempre, normalmente andam na casa dos 12% em 2021 rondou os 60%.
Etapa solidaria
Para se ser finisher temos de concluir a etapa solidária. São cerca de 10km não cronometrados, mas que é obrigatório fazer. Devo dizer que perante o estado dos meus pés nem levei as polainas colocadas, foram cerca de 2h de caminhada, praticamente ninguém correu, os estragos eram muitos e já só se pensava chegar aos autocarros e ir para o hotel tomar um banho.
Depois de mais 6h de autocarro, banho tomado, barba feita e reposto o sono numa cama macia, senti-me muito melhor. Tinha sido uma semana a dormir em solo duro.
Com toda a fome que tinha, e já a jantar no hotel, em Quarzazate, acabei por comer aquilo que sabia que não podia comer : saladas. E apanhei de vez uma gastroenterite, com alguma gravidade. Chegado a Portugal fui direto para o hospital.
Acabei por perder 8kg com esta brutal experiência.
Foi a corrida que me colocou à prova e que mais puxou pela minha resistência e levou a minha força mental a extremos nunca antes testados. Sem dúvida que a nossa cabeça é de uma força incrível e tem um domínio total sobre o nosso corpo.
Saí da MDS muito mais forte, com a capacidade de sofrimento e resiliência reforçados.
Mas posso adiantar que passados nove meses, na Hardrock, no Colorado, esta resiliência e sofrimento foram fundamentais para o sucesso, e foram mais 9kg perdidos. Brevemente faço o relato da Hardrock, que tive a felicidade de ser o primeiro português a concluir, a mítica prova americana.
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